Epílogo para o ano letivo de 2012/2013

Epílogo para o ano letivo de 2012/2013


Chegámos ao fim do primeiro ano letivo em associação de escolas, fim que, com altos e baixos, se alcançou em derradeiro passo, indicando que os lógoi (=dizeres), tudo quanto foi necessário ou oportuno dizer no seu decurso, se calaram. Ao calarem-se, outro tipo de considerações se levanta, tendo lugar o epílogos, o que há a dizer sobre o que foi dito, um balanço final que, pela sua natureza, é um dizer-em-futuro, um dizer para a frente, que não está dado em lado algum porque, seguindo-se a tudo o que os lógoi fortuita ou intencionalmente disseram, pretende interrogar o campo que fica para lá deles, como horizonte sobrante, como problemas que a sua concretíssima existência colocou, não ignorando que existir é estar com e no meio de muitas coisas, é viver de forma problemática, em radical equação que é preciso resolver.

Um tal exercício, no que deve ter de fuga ao capricho ou à fantasia, implica ter de eleger, isto é, entre as muitas coisas que se podem fazer, escolher justamente aquela que reclama ser feita. A este reto eleger deram os latinos o nome de eligentia e, depois, o de elegantia, como ciência da melhor conduta, da boa tarefa e que hoje assimilamos à palavra e ao conceito, algo torpe, de ética, sem esclarecer que este vocábulo, na sua origem, nada mais significava senão costume, tanto o bom quanto o mau. Em todo o caso, elegantia referia-se àquela pessoa que pensava o que devia ser pensado e dizia o que devia ser dito e não uma coisa qualquer. Pois bem, também nós temos de pensar e dizer pelo menos o razoável e que revista interesse no futuro nesta circunstância epilogante.

Kant, na regularidade de hábitos de pensador exclusivo, sem nenhuma outra ocupação, achou por bem recapitular o que já todos sabiam: que o conhecimento começa e termina no juízo, posto que a conclusão de um longo raciocínio, texto ou discurso será sempre um juízo, tal como a premissa de onde se parte. Ora, os juízos, sendo mais coisas, há uma em que eles ou são analíticos ou são sintéticos; os analíticos permitem o pensar analítico ou implícito, em que uma sequência de pensamentos brota de um primeiro pensamento em virtude de progressiva análise (Kant dizia que estes juízos não serviam a ciência – referia-se à física e matemática – que por estar em constante progresso de conhecimento, não podia utilizar juízos analíticos); os segundos permitem o pensar sintético ou progressivo, uma vez que o predicado acrescenta sempre alguma coisa à compreensão do sujeito e, portanto, cada pensamento conduz a um outro que lhe está contíguo, com o qual tem uma relação de nexo evidente, fazendo com que o pensamento progrida – é a famosa dialética ou série dialética de pensamentos, da qual se deu conta Kant, mas que Hegel e, sobretudo, Husserl puseram em evidência e trabalharam com detalhe. Se eu disser «o sol é uma estrela» este pensamento conduz inevitavelmente a um outro e novo pensamento que lhe está contíguo: o de espaço sideral que envolve a estela sol. Ao pensar o primeiro, é-me forçoso pensar o segundo e assim sucessivamente, sem termo final previsto ou suposto.

Pensemos agora a coisa inteira e os seus aspetos, por exemplo a paisagem que tenho em panorâmica vista diante dos meus olhos. A paisagem inteira jamais será vista (não há visões holísticas ou integradas, como o provou, em primeiríssimo ensaio, toda a filosofia grega, quer a pré-socrática, quer Sócrates, Platão e Aristóteles, que se consumiram na busca do “holos” e ficaram por explicações parciais – para Tales, o princípio unificador era a água; para Sócrates, o “conhece-te a ti mesmo”, para Platão, as ideias-arquétipo e para Aristóteles, a substância); o que verei da paisagem serão sucessivos aspetos ou perspetivas em nexo umas com as outras, mas a paisagem inteira será sempre pressuposta e nunca dada, porque a multiplicidade de ângulos de visão é infinita e, nessa medida, está fora do nosso alcance; por outras palavras, não podemos exercer senão uma visão sintética, passando de uma perspetiva a outra, num contínuo fluxo (anda muito mal tratado este problema da relação entre a coisa inteira e os seus aspetos e, normalmente, as pessoas deixam a escola ‘programados’ para irem atrás daquilo que não existe, das visões holísticas, integradas).Também um epílogo para o fim do primeiro ano letivo em associação de escolas terá de seguir um pensar sintético, uma série dialética de pensamentos, se queremos ser elegantes no sentido latino da palavra.

Um primeiro pensamento que, por sua vez, conduzirá a outros é o seguinte: o que parece um defeito na organização educativa, a paradoxa associação de escolas em razão de forçada poupança de meios, apanhamo-la no ar, em acrobático exercício, qual guardião de baliza em terrível campeonato, como minério indiferenciado e devolvemo-lo lenta, pausada e refletidamente como metal de boa forja, na certeza de que fazer melhor com menos recursos é uma crepuscular tarefa, algo que não conseguimos vislumbrar bem mas que nos irá obrigar a reinventarmo-nos a todos, a fazer com que ponhamos cá fora capacidades que não julgávamos possuir, escondidas que estavam no labirinto da nossa mente. Não estou a dizer nada de novo: houve pensadores, dos mais insignes e produtivos, que sublinharam bem o quanto a escassez ou a sobriedade de meios torna as pessoas virtuosas, criativas e humildes, salientando que as grandes descobertas e invenções foram feitas em situações de penúria vária – os exemplos podiam multiplicar-se – para não falar já no democrático apotegma segundo o qual a necessidade aguça o engenho (democrático porque vem do demos=povo), e não em ambientes faustosos, saturados de meios que induzem o laxismo do consumo que consome muito tempo a consumir e, por isso, é inútil, improdutivo, relapso. Aliás, quando Aristóteles lá em baixo, no fundo do tempo, afirmou que a virtude está no meio… (entenda-se: no meio de dois extremos) referia-se a um princípio moral, portanto regulador de costumes, que tanto os indivíduos quanto as sociedades deveriam observar, justamente em nome da justiça e da virtude: tudo quanto é humanamente elegível, tudo quanto o homem pode desejar e possuir, deve-o ser a meio termo, nem de mais nem de menos.

Pois bem, é provável que daqui a poucos anos saibamos trabalhar de maneira muito mais sustentável, não porque políticos de passagem no-lo tenham imposto, mas porque as condições severamente o aconselham. Trabalhar com menos papéis, menos reuniões e menos ruído e com muito mais silêncio, dedicação e assertividade, sendo uma questão de urgência e bom senso, é principalmente assunto relacionado com limites de crescimento. A ninguém passará pela cabeça que, num planeta finito, possa haver crescimentos exponenciais, consumo e atos de esbanjamento e inutilidade, do mesmo modo que todos sabemos que, em muitos aspetos, os limites do crescimento já foram atingidos e ultrapassados (bastaria chamar à colação as conclusões do Clube de Roma que datam do início dos anos 70 do século passado e antes de primeiro choque petrolífero e não do dia de ontem). Em suma, vamos todos necessitar de reaprender a ser, a ter e a estar, porque inexoravelmente teremos de viver, já ali ao virar da esquina, com muito menos e distribuir e partilhar com muito mais equidade.

Mas esta dramática situação, que se insinua em procela por todos os lados, longe de nos assustar, faz de nós destemidos cavaleiros na noite escura da incerteza e, apesar de termos o inimigo à ilharga, não alargamos o passo, cientes de que saberemos resolver o conflito pela destreza nas batalhas. Reaprender a ser, a ter e a estar, ao contrário do que tem acontecido na civilização ocidental desde o tempo dos gregos, convoca o postulado antropológico fundamental, segundo o qual o homem enquanto tal é uma unidade em aberto, está para além das determinações (provisórias) por que concretamente se coloca e existe, está para além dos seus traços genéticos, biológicos, psicológicos, sociais, culturais… ou de todos em conjunto porque, ainda assim, se estaria perante visões regionais, dispersas e fragmentadas do humano. O homem enquanto tal não é algo determinado. O determinado só existe ao nível dos factos que, no entanto, não esgotam o homem.

Esse postulado tem consequências. A primeira e a mais acutilante é a de que não se pode e não se deve valorizar mais uma determinação ou faceta do humano em prejuízo de todas as demais, porque isso seria coisificar o humano, espoliá-lo da riqueza que é a sua indeterminação ontológica. Ora, a civilização e a cultura ocidentais começam na Grécia com a procura das visões holísticas (uma visão holística, a ser possível, seria algo de determinado) e do conhece a ti mesmo, que Platão coloca na boca de Sócrates umas quantas vezes, repetindo a inscrição exarada no templo de Apolo, em Delfos. Ou seja, começam com uma impossibilidade e uma cisão. Falando desta, o conhece a ti mesmo é a primeira e a mais vincada cisão sujeito/objeto, a mais antiga luta do homem consigo próprio, experimentada na dualidade de si mesmo. Com tal força e projeção se lançou na história da cultura ocidental que o aparentemente desprevenido Descartes lhe deu novo folgo ao resolver a natureza humana em duas substâncias distintas – a res cogitans e a res extensa como coisas separadas e antagónicas comunicando entre si pela glândula pineal. O corpo seria mera extensão, atributo caraterístico da matéria, enquanto a mente ou eu pensante, o célebre cogito, algo bem consistente do ponto de vista ontológico, capaz de conhecer verdades, dando lugar de cátedra a um subjetivismo e a um racionalismo que inaugura a modernidade e cujas consequências não podem ser ainda totalmente aferidas.

Não sabemos onde esteve o espirito crítico dos gregos (excetua-se Heraclito que não embarcou em ditos costumeiros e ocupou-se em procurar o pensamento que governa tudo por todo o lado) nem fazemos a menor ideia das motivações de Descartes. O que sabemos é que tais dualismos valorizaram sempre mais determinado aspeto do humano, que forçosamente havia de gerar desequilíbrios que hoje constituem um desafio a exigir esforços hercúleos, quando o normal seria valorizar, em simultâneo, a pluralidade de aspetos, porém nunca o todo, porque isso não existe, não está dado (nunca será demais lembrá-lo). A exigência do conhece-te a ti mesmo e as prerrogativas do eu pensante são algo que diluem o homem, que enxertam nele uma teorização que o falsifica, que o faz perder a autenticidade originária, algo que o mascára e que no decurso da sua história e na historia dos seus afazeres o foi “branqueando” e continua a “branquear” em sistemas de crenças e tábuas de valores espúrios. Tudo o que o homem tem dito é a sua essencial mentira ôntica, é a negação do seu ser ou o discurso de um ser postiço, havendo necessidade de buscar o realismo originário e não a efabulação e a utopia. Esse realismo originário terá de alguma maneira de ultrapassar o modus eorum atual por originários eventos ainda não configurados mas por todos pressentidos e desejados.

O subjetivismo e o racionalismo são base teórica da modernidade. Esta instaura (também) a produção em massa, a iniciativa privada, a economia de mercado, a apropriação e acumulação privadas de bens com a exploração exaustiva, sem olhar nem medir consequências, dos recursos do planeta, que é a casa da gente, de todos nós, e não a coutada de alguns. E com tal força e dimensão se tem procedido assim que, neste momento, estamos já a gastar em oito meses o que o planeta nos poderia dar razoavelmente num ano. Esta foi pelo menos a conclusão da Global Footprint Network (Rede Global da Pegada Ecológica), organização não-governamental parceira da World Wide Fund for Nature (WWF, "Fundo mundial para a vida selvagem e natureza"), que calculou que a cota de recursos naturais que a natureza poderia oferecer em 2013 se esgotou em 20 de agosto, quando no ano passado se havia esgotado a 22 do mesmo mês e, em 2011, a 27 de Setembro. Estamos a viver a crédito, mas a crédito suicida, sem retorno, que jamais poderemos pagar se não diminuirmos drasticamente o padrão de consumo. A casa-mãe de todos nós está exausta e nós com ela, porque temos atendido somente a alguns, muito poucos, aspetos da nossa realidade. Somos racionalmente brutos e broncos!

Carlos Almeida, docente de Filosofia, da ESCCB

1 comentário:

  1. Parece bom demais para estar em letra tão pequena e com repetição de título. E o autor quem é... professor, aluno, algum extraviado membro da comunidade escolar? A entidade gestora do blogue deve ter mais respeito pelos leitores que se dão ao luxo de espreitar os blogues escolares que, no geral, e sempre com o devido respeito, acumulam demasiado lixo e pseudoinformação. Sugere-se a existência de uma equipa escrutinadora, não para censurar, mas para selecionar, como fazem as equipas técnicas que orientam as boas seleções futebolísticas (passe a analogia).

    ResponderEliminar